Fortaleza,
vinte de Novembro de 2012.
Oi,
tudo bem?
Que
modo mais safado de se começar uma carta. É que, na verdade, não sei bem como
falar com você. Meu sentimento de curiosidade em saber como anda tua vida se
soma ao sentimento de tristeza de saber que os meses estão passando numa esfera
estranha entre rápido e devagar, e que não sei realmente quem vou encontrar na
tua volta.
Como
está por aqui? Tá tudo bem... Entre os acessos estranhos de tristeza e os
desafios cotidianos de continuar, tá tudo bem. Agora eu tenho alguém que posso
contar e me sentir acolhida... Legal, né? Pois é, faz tempo que não me sentia bem assim,
tá tudo leve e caminhando pro bem. Estou bem feliz, na maioria das vezes. Os
probleminhas familiares continuam, mas nada que não tenha fim.
Sinto
sua falta, ainda misturada com o medo citado anteriormente do que vou encontrar
quando você voltar. Espero que continue a mesma coisa. Não, mentira. Espero que
melhore. Fico vendo tuas fotos e imaginando como seria legal estar contigo
tomando cervejas caras e vendo shows que a gente nunca poderia imaginar que
veria na vida. Mas ao mesmo tempo eu queria apenas o teu quarto, as conversas
estranhas sobre como a gente não toma jeito mesmo. Você hidratando o cabelo
enquanto contava como tinha sido a noite anterior e como estava feliz por
aquele menino ter aparecido na tua vida também.
É
uma merda mesmo, vivo dizendo que quero algo maior que isso, mas sinto falta da
vida provinciana com você nessa cidade esquisita e de poucos amigos. Mas calma
que um dia a gente pode fazer uma viagem cheia de erros e acertos, se você
quiser.
Pois
é, to vivendo bem. Com saudade, mas bem. É assim mesmo, a gente não morre
quando perde alguém, mesmo que temporariamente. Mas lembro de você com carinho
e espero que você volte pelo menos com
alguma lembrança boa dessa vida conturbada que deu um tempo em nove de
setembro. E quem sabe, quando você voltar, tudo se acalme ainda mais, do nosso
jeito, cheio de inquietudes.
Conta-me
de você... Quantos museus você visitou? Tá frio por aí? Queria frio, essa
cidade tá mais quente que nunca. E eu continuo cheia de clichês, escrevendo uma
carta pra falar do tempo... Enfim... Os dentes dos irlandeses são feios mesmo?
Liverpool é bonita como dizem? Viu o Morrissey andando pela rua sendo lindo?
Você ainda lembra de mim?
Fica
bem, meu bem. Termino essa carta aqui de modo brusco porque não saberia
terminar de outra forma. Muitas saudades. Viva.
Amo
você.
Não
consigo dormir. No último minuto de lucidez pré-sono, me arranho, viro,
esquento, esfrio, planejo, retrocedo, mas nunca esvazio. Estar todo o tempo preenchida,
bater do relógio, ponto de ebulição, palavras engasgadas, luz sitiada,
pensamentos condenados.
O
que entorpece é o segredo. Os pensamentos solitários, as cenas de filme que
passam pela cabeça, tudo que eu poderia ter dito e não disse, e tudo que eu
poderia falar, confessar, execrar, vomitar palavras e expectativas erradas,
fora de hora, apressadas.
A
rapidez assusta, a intensidade assusta, prende, arranha. Eu poderia escrever
nos muros os segredos, as vontades, as noites em claro que eu passei tentando
encontrar um sentido qualquer para manter tudo escondido, disfarçado e
mascarado com sorrisos estranhos e borboletas no estômago.
Está
tudo revirado. Mil rostos, expressões, palavras jogadas ao ar pra confundir,
encantar, amedrontar, me fazer parar. A afobação fazendo com que a percepção da
certeza seja incerta. Será verdade? Ou será mais uma alternativa da vontade de
querer rasgar-se, fundir-se, quebrar o gelo da tua casca dura? Da minha casca
dura...
É
tão cansativo suportar os murros de passados não esquecidos, que parecem
tornar-se presentes a cada vez que eu me aproximo. O eterno questionamento...
Valeria a pena tentar de novo apenas pelo prazer do gosto de sangue na boca? A
violência dos teus passos e a sutileza dos teus gestos me deixam numa montanha
russa de medos, incertezas e prazeres não revelados.
‘Preciso
poder explodir nosso big bang sempre que for necessário um novo começo, ou até
mesmo pelo prazer da novidade. Poder errar e não me esconder, não ter que ter
nenhum poder e poder não ter. ’
Eu
não poderia estar mais certa de que a queda seria gigantesca. E eu não me
arrisco a voar nisso. Mas a vontade de explodir e poder revalar me bate, me
chuta, quer sair da pele como um monstro. Mas o desejo é uma desordem, um ‘mãos
ao alto’, um ‘fique onde está’. Não resta nada a fazer além de me recolher, me
calar e observar de longe todas as minhas divagações sobre o poder da vontade.
Querer e não poder, não querer, pensar em querer, arriscar-se em querer já é
punição demais.
E
os segredos que eu poderia pichar no muro das ruas pro gelo derreter, não
atingirão você...
-- Não deveria ser assim, sabe? Não pra gente...
Ele me dizia na mesa suja do bar perto da faculdade
onde a gente sempre reclama. Enquanto fumamos cigarros diferentes e gostamos de
músicas diferentes, a dor é a mesma.
Eu, taurina de ascendente em virgem. Ele, leonino
com ascendente em virgem. Dois sem sorte. Incríveis. Podíamos falar horas de
filmes, músicas, sonhos, decepções... Cuidadosos, carinhosos, importosos, se é
que isso existe.
-- Não sei qual o problema, juro... Parece que a
gente faz tudo certo, mas algo sempre estraga...
-- É essa mistura estranha de Carrie, Charlotte e
Samantha, sabe? Uma bosta.
Eu rio. Apesar da comparação meio high school, é bem
verdade. Temos coração promíscuo. Agarramos-nos em tão falsas esperanças. Não
nos prometem nada e acreditamos na menor das expectativas. Se a gente pudesse
pelo menos esquecer os toques, os beijos, os karmas eternos...
Peço suas mãos e começo a mexer nos pelos do seu
braço. Calmamente, só analisando o porquê de tanto desastre assim.
-- A gente devia parar com essas Carries e
Charlottes, por favor.
-- Siiiiiim, vamo? Por favoooor? Ele me diz com a
voz doce e aguda de menino esperançoso.
-- A gente não pode, Pedro, você sabe, a gente tenta
e não consegue.
-- Não sei por que sugeri isso, desculpa.
A gente ri, toma outro gole de cerveja e continua a
reclamar da falta de sorte. O assunto muda e a gente conversa sobre a festa do
final de semana. É, aquele restinho de esperança, sabe?
Às vezes eu me pego pensando no quanto sou grata. De
todos os homens que já tiveram alguma significância pra mim, o leonino supera
tudo. Apesar dos gostos diferentes, é incrível como sou grata por ele. O
carinho é tão grande que às vezes nem me cabe no peito. Grata pelo empréstimo da casa na sexta, por tentar me proteger de ver o beijo sábado. Por ser sempre tão pai,amigo,irmão.
Amamos com toda molécula do corpo. Intensos demais,
esperançosos demais, perdedores demais. Mandamos mensagens inapropriadas de
madrugada, ligamos bêbados e chorando. E a esperança de compreensão não acaba.
Isso é melhor que qualquer outro tipo de coisas em comum. Se você não existisse, a loucura, já em doses tão cavalares, expandiria pelo mundo como doença.
Agora sinto raiva por esse texto estar tão
pré-adolescente. Mas é bem nossa cara. Escrever nome em caderno pra depois
apagar. Tentar mudar, agir friamente, não ligar, não responder as mensagens. E
aqui estamos de novo, chorando dores de velhos e novos amores...
Pelo menos posso citar Caê, um dos poucos gostos em
comum, pra afirmar com certeza que para desentristecer, leãozinho, o meu
coração tão só, basta eu encontrar você no caminho.
Pela força, pelo riso, pelas lágrimas, pelas noites
em claro, pela juventude e velhice que compartilhamos... Por tudo. Meu leão.
Forte e nem percebe. Sendo leoa por você aqui, do lado. Tão forte e nem
percebo. Eles não nos merecem, leãozinho...
Eu te amo.
Aos dezoito anos, tinha envelhecido. Desde que se
entendia por gente o consideravam carrancudo, tímido, com olhar de fome. Isso o
fazia parecer mais velho, mas acabado e meio acabrunhado. Não tinha nem trinta
anos, mas já teria histórias para ilustrar de guias de viagens a livros
vagabundos com posições do kama sutra.
Tinha como extrato uma mistura estranha e sôfrega de
cervejas, marlboro light e whisky. Camisas puídas, talvez de aguentarem puxões
de brigas em bares ou nos quartos de motel por aí, não tinha certeza.
Geralmente não se preocupava em tentar explicar a origem dos seus arranhões,
nem dos seus problemas, nem das suas escolhas. Andarilho por natureza, barba,
bigode e carranca.
Andava de volta pra casa depois de comprar cigarros e
camisinhas. Maldito cigarro de menta. Era o pior pra ele. O efeito de um dos
cigarros costumeiros só era alcançado com uns três ou quatro desses de
bichinha. Sem contar que não era lá muito ofensivo à garganta. Não sentia
aquela dorzinha meio filha da puta da fumaça digerida.
Reclamou do cigarro pela última vez e esvaziou a cabeça.
Andou poucos passos e ouviu a voz. Não tinha ideia de onde aquele timbre tinha
surgido. Tinha Ficado bêbado e não percebeu? Entonteceu um pouco, examinou a
rua. Alguns gatos pingados andavam sem prestar atenção, mulheres de saltos
imensos e saias de um palmo. De onde aquilo vinha? Ela cantava algo meio
indistinguível, meio cômodo. Sentia-se perturbado e curioso e só queria
identificar de onde vinha. Percorreu algumas ruas enquanto a sonoridade aumentava.
Um bar de cortinas vermelho carmim, bem surradas, sem placa, sem visão. Assim
que agarrou a maçaneta do portão enorme, a música para. Teria de ver quem era
agora ou poderia cair em desgraça ali mesmo. Era uma curiosidade estranha,
curiosidade de viajante, escritor, virgem, menino.
Cantava. Mesmo que não houvesse mais de três pessoas
naquele bar. Sentia-se cansada, tentando prender-se no salto fino, nas meias e
no vestido justo vermelho. Não era a coisa mais atraente que tinha vestido
desde que tinha conseguido conseguir cantar ali. Mas algo a dizia que hoje
deveria ser mais alta em tudo. Voz, sangue, pressão, garganta. Parecia que
clamava por alguém, mesmo que a própria não conseguisse dizer quem. Nenhuma
daquelas pessoas estava sequer prestando atenção, mas queria salvar-se. De
qualquer maneira. Cantava...
Era a preferida. Nina. Não sabia disfarçar muito bem
quando cantava uma música que realmente gostava. Abriu o sorriso e os dois
botões ao lado do vestido, perto das pernas. Precisava ficar confortável para
essa. Até que percebeu alguém aparecer por entre as cortinas do fétido lugar.
Se rosto não era muito perceptível pela luz. Só via a silhueta tomar forma na
cadeira e pedir alguma bebida enquanto ela começava a entoar a música. ‘Baby, do you understand me now? If sometimes you see
I'm mad…’ Queria vê-lo. Não sabia exatamente o porquê daquilo.
Sentia aqueles olhos, provavelmente castanhos, como de homem de verdade,
fitá-la. Não tinha nada demais. Os cabelos estavam presos num coque mostrando
um pouco o pescoço, com alguns cabelos soltos no elástico, batom vermelho,
vestido da mesma cor, meias arrastão. Mas não era tão bonita como aquilo tudo,
pelo menos não se sentia. Mas... Era diferente. Via mais claramente agora, os
olhos, castanhos mesmo, como os seus. Parecia estar sendo fodida ali, no palco,
pelos olhos, pela simples presença dele ali. Sentia uma vontade imensa de se
tocar pra todo mundo, tirar o vestido, tirar a máscara de elegante e sentar-se
no colo dele pra saber se era grande. Horror de se ver assim. Horror de estar
tão nua na frente dele.
Ela tinha olhos castanhos. E cantava num inglês perfeito.
Parecia que provocava sem saber. Mexia as ancas, fazia pequenos movimentos com
a cabeça e o cabelo balançava. Mal havia começado a cantar, mas ele se sentia
fisgado. Sentia-se ereto. Estava. Não saberia descrever a vontade que tinha de
arrancar seu vestido e suas meias, ali no palco mesmo. A tempestade que chega é da cor dos teus
olhos castanhos...
Iria até lá. Não pensava mais. Não esquecia a letra, mas
esqueceu de si mesma. ‘Don’t
you know that no one alive can always be an angel? When everything goes wrong
you see some bad…’ Caminhava aos olhos dele. Desprendia-se. O
corpo inteiro em frenesi. Mexia as ancas, arrancava aquele olhar para seu corpo
inteiro. Deus, como ele a transformara. Estava em transe com a troca de olhares
enquanto os corpos se aproximavam. Ele era indescritível, com uma brutalidade
natural. Estavam a menos de cinco passos um do outro e a luz estava agora
insuportável. Alguém lá de cima estava gostando do que via. E ela tinha
certeza.
‘You know sometimes,
baby, I'm so carefree, with a joy that's hard to hide…’ A
alça do vestido agora se debruçava sobre seu ombro esquerdo. Ele tremia e
latejava em várias partes diferentes do corpo. Havia uma força completamente
estranha que o mantinha naquela cadeira. A voz, o cheiro, o corpo, as meias...
Num gesto completamente abusivo, ele estende o copo de whisky puro para ela e
ela recebe. Cantarola mais alguma parte da música e se emudece enquanto toma um
gole daquilo. Frágil, fingia não ter sentido a garganta esfolar-se um pouco e
voltou ao seu espetáculo, em voz e corpo. ‘Then sometimes, it seems again that all I have is
worry, and then you burn to see my other side…’
Tocava o rosto dele com o dedo indicador sem entender
direito o porquê. Parecia que se o tocasse completamente derreteria, tinha
medo. Ele não parava de encarar, parecendo um pouco sonolento, bêbado ou apenas
estafado. O tinha sugado a vida sem sugá-lo? Não tinha ideia do que exatamente
fazia, apenas esperava que ele entendesse. ‘But I'm just a soul whose intentions are good. Oh
Lord, please don't let me be misunderstood…’
Ele iria explodir se não fizesse alguma coisa, rápido.
Enquanto ela se virava para voltar ao seu lugar, ele segurou-lhe pelo vestido,
num gesto estranhamente forte. Sentou-a em seu colo, cuidadosamente para não
assustar aquela que parecia a mistura perfeita de fêmea e garota. Ela dançava
devagar em seu colo, ainda cantando, por mais difícil que fosse. Ela sentia o
membro latejar por entre suas coxas. Molhada e com a garganta seca. Não via mais
ninguém, apesar do raio de luz de holofote que estava acima dos dois. Implorava
silenciosamente com os olhos para que ele a tocasse sem pudor nenhum. Enquanto
as mãos dele percorriam o interior das coxas revestidas pelas redes das meias,
sentia as penas tremerem e o pé se contorcer por dentro do sapato. ‘Oh baby, I'm just human. Don't you know I have faults
like anyone?’
Rasgou-lhe as meias. Queria sentir a umidade e o calor. Usou
as unhas e os dedos com tanta força que teve de segurá-la com mais força no
colo. Ela ainda cantava, com a voz extremamente rouca e bêbada de querer mais.
Sentia as unhas longas e os dedos fortes o segurarem por cima das calças. Com
uma mão só, ela o tocava inteiramente, com movimentos circulares
milimetricamente sincronizados com o movimento dos quadris. Precisava senti-la
por dentro, enfiava os dedos enquanto ela gemia, enquanto ela cantava.
Agarrou-a delicadamente pelo coque e aninhou sua cabeça em seu ombro,
sincronizando as duas vozes aos dois movimentos, as duas mãos: ‘I try so hard,so
don't let me be misunderstood...’
As luzes apagaram em um instante. Ele ouvia risadas
vindas de lugares indefinidos. O peso em seu colo se desfez e ele apenas
sentia-se leve, no bom e no mau sentido. Viu o corpo miúdo e de meias rasgadas
correr até o fundo do palco,talvez com vergonha ou talvez com orgulho. Eles
foram o final inesperado daquela noite insone de três bêbados e um garçom.
Sentia-se estranhamente vestido, tão contrário da última vez, parecia tão natural
estar despido ali...
Esperava por ela fumando um cigarro atrás do outro. O sol
quase nascia, quase duas horas de espera ansiosa e de incontáveis cigarros de
menta. Ouviu um barulho de passos e alertou-se. Ela preparava-se para ir embora
acendendo um marlboro light e tentando ajustar os sapatos baixos nos pés
cansados. Arqueou a cabeça e o viu. Envermelhou-se, alargou os passos e andou
na direção dele. Tão carrancudo. Num gesto estranho, tornou-se de novo cantora
de bar, arrancou aquele maldito cigarro de bicha de sua boca, lhe beijou os
lábios rapidamente e sem língua. Em seguida acendeu o cigarro que havia
substituído rapidamente entre seus lábios, ágil como felina.
Não perguntariam os nomes um do outro até se sentirem
confortáveis. Caminhavam com passos lentos na mesma direção. Olhares trocados
rapidamente, pernas tremidas, ereção ainda ali, umidade ainda ali. Deus sabe
que canções seriam as de logo mais.
Pro Renan. :)
As meias três quartos rasgadas eram usadas pela milésima
vez ao dia. Ele era realmente um monstro. Corria quase toda semana apressada em
alguma loja pra comprar um novo par. Não aguentava tanto dinheiro gasto pra
satisfazê-lo.
Incrível como ele ainda tinha cheiro de rosas vermelhas e
patchouli. Era dele, sem nenhum perfume. Era a marca que ela mais gostava.
Apesar da enorme cicatriz no peito da segunda ponte de safena, ainda era a
marca do cheiro que a impressionava. Rasgava-lhe as meias, as blusas, puxava-lhe
o cabelo e lhe chamava de cadela. Tinha dono. Nos incontáveis hotéis da cidade,
era ela a companhia. Marcada à ferro e fogo pelo membro e pelos tapas daquele
senhor.
Enquanto se vestia de meias listradas em preto em branco
e fazia a maquiagem no espelho, cantarolava ‘Somewhere Over the Rainbow’, já
ensaiando a lolita que encarnaria naquela noite. Dorothy iria encontrar o
mágico de Oz pra ser espancada de novo. Por mais brega que fosse, já sentia a umidade lhe fazer ruborizar.
A calcinha de laços não lhe servia mais. O dinheiro do
velho ia todo pra porcaria e pra cigarro. ‘Se eu engordar, volto pra casa mais
roxa ainda’, temia. Os gatos escaldados tem medo de água fria, e o jato viria
quente, e pela cara toda, era melhor se preparar.
As coxas estavam arranhadas, esmurradas, vermelhas da
noite anterior. Desejava-lhe a morte, que o excitasse tanto ao limite de um
ataque cardíaco. Mas ele era resistente e de uma virilidade fora do comum. 60
anos tá fazendo semana que vem e ainda a conseguia deixar morta, esfolada e
esgotada, dolorida por dias e com cheiro de porra.
O dinheiro é bom. E o cheiro... Porra, o cheiro. Poderia
arrancar cada pêlo daquele peito e não conseguiria extrair o perfume. Difícil mesmo é ainda estar radiante,
arrumada e sem poder gemer de dor.
Via aquelas marcas no espelho e se sentia doente,
inebriada e nostálgica. Lembrou-se da vez que rolou da escada aos cinco anos.
Joelho ralado, pé torcido e rosto banhado em sangue. O desastre se tornou forma
de vida. Chegava em casa, pegava o vibrador e tentava esquecer das marcas.
Vela, chicote, vendas, mão livre, marcas de cigarro queimado sobre a pele,
socos e empurrões. Satisfazia-se com as lembranças enquanto o troço vibrava,
mas na hora era o inferno na terra.
Não sabia mais quanto ganhava por dia, nem se gostava, se
detestava, se gozava. Queria que em algum dia, ele a acarinhasse. Mas ele não
consegue, abaixa sua calcinha, a cheira, morde, enfia, bate... Ele não
conseguia. Ainda morreria num encontro desses. Mas ah, o perfume... Quem será que
o marcou tanto assim?
'Sei que amanhã,quando eu morrer,os meus amigos vão dizer que eu tinha um bom coração.
Alguns até hão de chorar,e querer me homenagear fazendo de ouro um violão. Mas depois que o tempo passar sei que ninguém vai se lembrar que eu fui embora... Por isso é que eu penso assim: Se alguém quiser fazer por mim,que faça agora. Me dê as flores em vida,o carinho, a mão amiga,para aliviar meus ais. Depois que eu me chamar saudade,não preciso de vaidade,quero preces e nada mais...'
Seria cauteloso demais dizer que a música que tocava no player do computador era uma certeza. Só gostava de ouvir de vez em quando uma certa calmaria pra embalar os nervos inquietos e a sensação de perda. Deveria brigar faltando uma semana, vomitar as mágoas ou reclamar de cada coisinha que parece enorme aos olhos. Mas não.
Calarás a boca pra cada riso irônico ou peça pregada. Ignorará o fato de quase nunca ser lembrada. Piada pronta, desastrada e senil. Parece masoquismo. Já devias ter se acostumado. A esquecer e ser esquecida. Ou melhor,nunca lembrada.
O bom é levar patada mesmo,quem sabe assim eu aprendo. Idiota,idiota,a mesma mão que te afaga é a mesma que te apedreja. Mas enquanto ela escarra,tu só beija. Beijas o pé,os dedinhos e engole o cuspe. Nojenta, esfacelada. Aprende a te amar,caralho. Aprende a ser amiga e não capacho.
Mas você é um doce,uma das melhores amigas que eu tenho,te amo tanto... rá. Estúpida.
Eu devia brigar,mas fico quieta e me acostumo. Esse é o meu problema. Tô toda suja e ainda quero nadar na lama.
‘Ser careta é chato’ devia ser um ditado popular. Todo mundo
sempre falando que a espontaneidade é uma dádiva, que os dias de juventude e
farra são os melhores dias que poderemos ter na vida.
Daisy fresh girls, lolitas com fome de mundo, de braços e
pernas abertas pra agarrar qualquer oportunidade de atenção ou fingir a
espontaneidade anteriormente citada. Sorrisos comprados, pernas depiladas por
20 reais, batom construído com mesada de quem ainda não saiu de casa ou nunca
andou de ônibus.
Agora sim, você pode fingir a noite inteira. Se fudeu com
vários, se não deu pra ninguém, se fica bêbada alegrinha, bêbada triste ou
bêbada puta. Parecem-me tão falsas as aspirações de juventude, tão compradas e
tão encenadas no espelho. Parece-me um orgasmo fingido de quem na verdade só
quer ter prazer e mesmo assim continua frígida.
Tem os que se cortam, os que bebem, os que vomitam ou os que
deixam de comer. Tudo pra sentir alguma coisa, pra se sentirem capazes ou para
gozarem de felicidade natural. Dançam na mesa, roubam beijos, fantasiam-se de
mulheres fortes, homens fortes e seguros de si. Mentira... E ainda parecem tão
perfeitos aos olhos dos lonely boys and
girls do mundo.
Juventude é uma merda. Uma coisa tão fingida e desprovida de
sentimento... Os beijos são falsos, a sensação de poder é falsa. E não, não se
pode abraçar o mundo com as pernas, nem agora aos vinte ou depois dos quarenta.
A questão é parar de se iludir achando que podemos tudo. Não podemos nada, não
conquistamos nada nem ninguém. Nem mesmo a falsa sensação de felicidade depois
de olhares furtivos.
Nenhum jovem é cool.
Por mais que possa parecer, mulheres são meninas e homens são criaturas
púberes eufóricos. Não se gabe de quantos shots de tequila você aguenta ou até
que horas ficou acordado por causa de incontáveis idas ao banheiro (se você
conhece a cena da Uma Thurman indo ao banheiro em Pulp Fiction, você
provavelmente sabe do que estou falando). É tudo falso. Do cabelo à válvula de
escape,tudo é sintético.
Juventude de merda.
Ela pinta os
lábios pra escrever. Acende o incontável
cigarro do dia enquanto escarra pro papel. Os olhos inchados pela alergia da
troca de clima.
Ainda
pareceria sexy pra qualquer um que olhasse. Tinha um jeito de tragar que a
comparava a Bardot. Mas sem a elegância, ela era uma mistura de um moleque de
10 anos com uma velha depravada e feminista, como Simone.
‘Sartre
sempre foi um sofredor. Simone tinha seus passatempos e ele agüentava por
amor’, ela falava nas rodas de bar que deveria existir um Sartre para cada
mulher, que experimentaria outros Sartres de mulheres que não ligariam de
dividir.
Sentia-se
dividida. O filho dormia no berço enquanto ela via ‘Quanto mais quente melhor’
e sonhava com Marylin e seu batom vermelho com pintinha no canto da boca.
Conseguia arrancar picos de felicidade com o sorriso do filho, os filmes das
divas que sonhava em ser e as doses de uísque nos bares.
Uísques
esses seguidos da mesma pergunta: ‘O que uma mulher tão doce e com olhos tão
tristes faz num bar sujo desse com bebida de homem?’. Ela tinha vontade de
mandá – los à merda, à puta que os tinham parido. Mas alegrava os olhos como
podia, sorria o sorriso amarelo de inúmeros goles e tragos e pedia um Martini
por conta do jovem galanteador.
Trepava como
ninguém. Nisso parecia com Marylin. O filho tinha feito o corpo mudar, mas a
boca e a boceta ainda arrancavam rios de sêmen e gemidos. Quase nunca gozava,
mas quando acontecia explodia em um riso estranho e meio moleque. Gostava da
cara do escolhido quando isso acontecia num misto de ego inflado e
estranhamento. Quando não gozava, gostava de ver como os humilhava, naquele
esforço de ouvir a risada que já tinham ouvido a respeito. Era um Bukowski de saias, no eterno papel de
dominador e dominada.
Bukowski
entenderia mesmo. Tomaria umas boas doses com ela e depois recitaria ‘Bluebird’
e ririam juntos, pois os dois saberiam exatamente do que se tratava: Há um
pássaro dentro de mim, que quer sair, mas eu o agonizo com cigarro e bebida...
Sentia falta
da época de colégio, do estômago liso, sem estrias, olhos felizes. ‘Mas talvez
seja esse o meu charme, estar acabada... ’ e voltava a maquiar – se para mais
uma sessão de bebida e galanteios.
Pagou metade
do dinheiro da babá, pôs – se em seus saltos e foi para a vida. Ser Simone, ser
Bukowski, ser Marilyn e ser puta. O papel que ela mais sabia ser. No
radio do carro, ele recitava: ‘There‘s
a bluebird in my heart that wants to get out...’
Sorria. Quem
sabe um dia, Buk, quem sabe um dia…
Postado por
Rhaiza Oliveira
20:38
O belo sempre muda com o tempo. De corpos
rechonchudos até a ditadura da anorexia, a beleza é uma coisa tão subjetiva que
é até uma perda de tempo ficar olhando-se no espelho procurando aquela gordurinha
invisível, as espinhas que não param de aparecer ou ficar chateada com aquele
dedo do pé que é maior que o dedão.
Mas existe um tipo de ‘não beleza’, se assim
podemos dizer, que não chama a atenção, não encanta, e parece que vai sempre
passar despercebida: A mulher (ou o homem) sem sal. Sem graça, sem tempero, sem
sucesso no amor. Sem chance de chamar atenção ou ser notada. Insossa e tediosa.
Já que as mulheres são seres mais admirados,
falemos delas. Todos os dias vemos as propaganda de xampu, de absorvente ou de
margarina. Altas, esguias, cabelos esvoaçantes e vários homens virando suas
cabeças para admirar aquelas mulheres quase que impossíveis. Dá pra negar que
qualquer mulher normal se sentiria intimidada e quisesse ser assim? E com
certeza os seres do famigerado gênero masculinos dariam mundos e fundos para
ter uma chance com as lindas e ‘temperadas’ mulheres dos comerciais.
Mas o que falar da mulher comum? A que tem
problema com o cabelo, se queima com cera quente ao depilar-se, tropeça no meio
da rua tentando se equilibrar no salto agulha e ficam horas no salão tentando
chamar atenção de alguma maneira? Será que elas terão sua chance de mostrar que
podem sim ser tão encantadoras como as musas da televisão?
Peço uma chance para falar de mim. Eu uso
óculos desde os três anos de idade. Antes da chamada escova progressiva, eu
tive de aguentar apelidinhos não muito carinhosos em relação ao meu cabelo.
Talvez por isso eu tenha aprendido a disfarçar a tão comentada ‘beleza exótica’
que me foi concedida por Deus com uma técnica que talvez, agora refletindo um
pouco, tenha até mesmo me atrapalhado: o humor.
Piadinhas e comentários sarcásticos sempre me
foram uma arma poderosa para tentar não chamar a atenção para a minha altura e
minha capacidade incrível de tropeçar no meio da rua. Mas convenhamos: mulher
engraçada não é vista como bonita. Não adianta você ser engraçada ao ponto de
ser considerada apta para fazer stand up
comedy, ou até mesmo fazer aquele cara irresistível do bar da esquina rir
por horas com você. Tenha a certeza que depois que se recuperar da crise de
riso, ele vai levar pra casa aquela moça alta de batom vermelho e com fenda no
vestido.
Ser destinada a ser uma mulher sem sal é quase
uma tortura. Apesar de ficarmos completamente encantadas com aquele cara de
sorriso brilhante, até mesmo trocar uns beijinhos com o pretendente da noite,
depois de um tempo você passa a não se decepcionar mais quando não recebe
aquela ligação no dia seguinte ou não ouve mais notícias do rapaz depois de
meses daquele que foi, para você, o primeiro beijo inesquecível.
Nós, as mulheres sem sal, podemos ser
engraçadas, meigas, simpáticas e super de bem com a vida. Mas acabamos sempre
como aquelas mulheres consideradas de transição: somos apenas umas daquelas mulheres
descritas como ‘aquela menina com quem eu fiquei algumas vezes, muito legal e
divertida, mas, sei lá, não era muito interessante’. Esse é nosso pobre
destino.
Nossa única alternativa é sonhar e ainda ter
um pouco de esperança de talvez encontrarmos aquele carinha também sem sal que
enxergue aquela beleza tão escondida por palavrões e palavras sarcásticas na
mesa de bar e na fumaça de cigarro. Não chore por dias se você encontrar aquele
cara lindo que há três meses você está interessada passeando pela rua com uma
loira de parar o trânsito. Olhe para aquele cara na cafeteria com uns quilinhos
a mais, de barba mal feita lendo Tolstoi. Quem sabe ele não pode ser a pimenta
que faltava para sua vida?